<$BlogRSDUrl$>

Pano do Pó

Para tirar as coisas a limpo,
mesmo nos cantos mais difíceis.


2003-09-26


 

L'Afrique

Foi numa tarde de domingo no fim de Março de 1995 que embarquei pela primeira vez rumo a África. O destino era Bissau. De certezas, tinha apenas um mês de estada num projecto numa empresa local. De resto, a bagagem era composta por todos os mitos sobre África que alguém nascido e criado em Lisboa vai acumulando. Falaram-me da pobreza, de não haver nada, do calor, dos abutres de pequeno porte que abundam nas ruas da cidade e pouco mais.

O primeiro grande impacto, para o qual não tinha sido preparado, deu-se no momento em que saí do avião. E não foi só pelo calor que se fazia sentir às 22h, há no ar africano um cheiro intenso, que quase pode ser degustado e que dificilmente se transmite a quem nunca o sentiu. Percebi imediatamente que ia gostar de ali estar.

Depois vem a surpresa de ver um aeroporto internacional que pouco mais é que uma casa em mau estado, onde até se vai a andar pela pista. O primeiro contacto com a burocracia africana e duas horas depois, já com as malas na mão, o segundo grande choque. Mal ponho o nariz fora da porta do edifício do aeroporto, apercebo-me da escuridão total e de um barulho ensurdecedor, de uma multidão que se acotovela. Logo que os olhos se habituam ao escuro, consigo ver centenas e centenas de pessoas, numa multidão em grande algazarra, que rodeiam o aeroporto e que olham sem pudor cada pessoa que desce os poucos degraus. O porquê, viria a descobrir mais tarde.

Entrámos no taxi e realizamos um percurso que não cessou de me surpreender. Por esta altura já passava da meia noite, mas parecia que toda a cidade estava na rua a andar pelas estradas. Para completar o quadro, não existia iluminação pública em Bissau, pelo que só via o que os faróis do Renault 18 mais mal conservado do mundo iluminavam, ou o espaço frente às poucas casas com luz na porta..

Pelo menos o hotel era bonito e tinha um ar bastante tropical.

Os primeiros raios de sol entraram pelo quarto ainda antes das 6 da manhã, altura em que fui acordado pelo chamamento à oração, gritado pelos megafones do minarete da mesquita estrategicamente colocada frente ao hotel. Descobri deste modo que grande parte da população guineense é muçulmana, o que explica que no calendário laboral, convivam como feriados oficiais os relativos às duas religiões. Mas o que de mais importante a luz do sol me trouxe foi, finalmente, a possibilidade de ver a cidade.

E o que vi não é fácil descrever. Bissau é uma cidade dominada por pequenos edifícios, de não mais que dois andares, na sua maioria casas de estilo colonial. É razoavelmente geométrica, pelo menos na parte mais antiga, mas depois.... depois é difícil explicar como a luxuriante vegetação e as cassas de terra e colmo que se misturam na paisagem, transmitem a sensação de que a selva vive dentro da cidade, ou vice-versa. Há porcos e cabras que se cruzam livremente com as pessoas nas ruas. Há mangueiros por todo o lado, há crianças, imensas crianças, que correm em grupos. As estradas parecem ser caminhos de terra para onde alguém atirou, inadvertidamente, pequenos pedaços de alcatrão que servem apenas como obstáculos. O lixo que se acumula nos inúmeros baldios, faz um festim para os abutres de que antes falei. Mas a conjugação de tudo isto resulta estranhamente bela e embriagante.

Descobri pouco a pouco o estilo de vida guineense e a sua forma de estar e, enamorei-me irremediavelmente por este país e este povo. Gente simples, sincera e feliz. Uma felicidade desconcertante, tendo em conta as carências do dia a dia. Gente que nos cumprimenta na rua e quando nos encontra num bar. Que nos convida para comer nas suas casas e nos obriga a contar como vai o mundo lá fora e porque nós, portugueses, os deixamos ali entregues aos franceses que são omnipresentes, mas em troco lhes pedem a francofonia que eles não desejam. Chega a ser embaraçoso tentar explicar que em Portugal ainda há preconceitos para com os Palop. Percebi que é um povo que se liga ao mundo pela RTP África e pelo avião da Tap que chega ao domingo, trazendo os jornais e as pessoas com as novidades que tanto esperam. Sim, é esse o motivo da multidão que cerca, semana após semana, o aeroporto aos domingos à noite.

Deslumbrei-me com os bares e discotecas onde se toca música ao vivo. Com a vida social de Bissau, mas acima de tudo, com o inesquecível arquipélago das Bijagós.

Por tudo isto e por o ter repetido no ano seguinte por outro mês, foi Bissau a única outra cidade onde desejei verdadeiramente viver a tempo inteiro. E é também por estes motivos que me tem custado imenso ver a degradação que a instabilidade política pós - Nino Vieira trouxe ao país, que caiu para terceiro mais pobre do mundo.
Tenho saudades, Bissau!

This page is powered by Blogger. Isn't yours?