13 DIAS NO MAR
Diário de bordo da Blackbelly
Dia 1
6.45h
Encontrámo-nos à hora combinada junto ao barco, na doca. Está escuro e frio. Tenho sono e quero ver se acabo de dormir mal entre no barco.
6.55
Escolhi um bom camarote, fico no beliche de cima e acho que em baixo está uma ruiva esquisita, mas caladinha. Vou dormir
9.50
Acordaram-me para o briefing na sala de projecções.
Com as luzes acesas e já sem sono pude finalmente ver a cara dos meus companheiros de mar. Susto! Parece que estou na sala de espera das consultas externas do Júlio de Matos. O Comandante Zenái Per parece ser um homem sereno, que quando fala me faz lembrar o Boris Yeltsin: tem um hálito a vodka que acorda os mortos.
Está conosco uma equipa de repórteres da Al Jazira, que vão tentar captar a emoção da recolha e análise de espécies oceânicas.
O nosso grupo divide-se em especialistas do Burkina Faso na captura de tubarões, que vão recolher fígados de tintureira para análise, temos ainda o Monne Ty, um biólogo sueco que vem estudar a vida sexual das lulas e diversos investigadores de pesca da universidade da Beira Interior, comandados pela ruiva de metro e meio que ficou no meu camarote.
12.30
Descemos para almoço. Ia morrendo quando vi o cozinheiro. Parecia o cozinheiro sueco dos Marretas, mas apenas pq mexia a boca como se tivesse um braço enfiado por baixo, de resto é vietnamita e vive na Buraca.. Chama-se Soné Kamin.
21.30
Já jantámos e estou no camarote. Estou cheia de saudades do Pano do Pó e não há um cyber café nesta traineira.
Dia2
10.20
O pequeno-almoço foi ovos mexidos com filetes. Acho que vou perder peso.
12.00
Ainda não estou refeita. Os grupo dos africanos esteve a fazer a dança do chamamento dos tubarões e sem querer raparam algum do cabelo à ruiva da Beira Interior. Descobrimos que afinal é ruiva falsa
22.10
Vou dormir. Estou cada vez com mais saudades do Pano do Pó.
Dia 3
15.40
Penso que os jornalistas da Al Jazira não andam a gostar da viajem; um deles, o Mohamed Alx Ung anda sempre com um colete estranho, com fios enrolados, a gritar «I’m the queen of the world» e a correr pelo convés.
21.25
Tenho tantas saudades do Pano do Pó.
Dia 4
18.45
O dia correu numa calma sepulcral. Não apanhámos tubarões, o que fez o chefe deles chorar ininterruptamente durante meia hora, até o Soné Kamin aparecer com a panela de feijoada de algas.
23.40
Não conseguia dormir, estava só a pensar no Pano. Decidi recorrer ao plano de contingência e abri o pano do pó de flanela cor de laranja que trouxe. Estou já mais calma e vou dormir agarrada a ele.
Dia 5
8.10
Finalmente um grupo de tubarões apareceu no radar. Os gajos passaram-se tanto que iam deitando ao mar o sueco, que estava a puxar uma lula enorme.
9.35
Puxámos as redes e vinham 4 enormes tintureiras. Um dos tipos da Beira Interior passou-se e começou a chorar a pedir para não as abrirem e não lhes tirarem o fígado. Outro gritava muito alto:«Vêm sardas na rede? Vêm sardas na rede? », nesse momento o Mohamed Alx Ung juntou-se a ele a vasculhar a rede e largou a camara em cima da caixa de lulas do sueco. Foi preciso o comandante Zenái Per aparecer para controlar a turba enlouquecida.
22.40
Não aguentei mais com saudades de escrever no Pano do Pó, peguei numa caneta e escrevi na flanela cor de laranja
23.15
A porcaria da flanela não dá jeito nenhum para fazer os smiles e nunca consigo abrir os comentários. Este Pano do Pó não é a mesma coisa... ou então é.
Dia 6
5.50
Acordei com repetidos sons TAU, TAU, TAU e gritinhos e gemidos de «agarra-a, sua porca!». Vesti o impermeável e saí devagarinho à procura da origem. Por baixo da porta do sueco Monne Ty saía luz e quando empurrei a porta, pude vê-lo de cabedal e a tirar apontamentos, enquanto incitava duas lulas em cima da cama. Oh Deus, mas porquê é que isto acontece comigo?
18.00
A primeira tarde calma, comecei a escrever os relatórios das primeiras amostras e experiências.
Dia 7
14.10
O almoço foi iscas. Tudo decorreu pacificamente até o chefe dos africanos, o Tó Nii Kanga ter entrado na sala a gritar que lhe tinham roubado os fígados de tubarão e o cozinheiro Soné Kamin ter fugido pela janela a praguejar em vietnamita.
17.15
Acabou-se o tinteiro da impressora. Os relatórios deviam ser impressos. O Comandante prometeu que amanhã resolvia o problema, embora não perceba como, porque admitiu que não tem tinteiros de reserva.
Dia 8
11.10
Começámos a imprimir os relatórios das biópsias hepáticas às tintureiras. Não entendo, mas cada folha impressa exala um estranho cheiro a choquinhos.
12.10
Soné Kamin entrou de faca na mão a gritar pelo comandante, porque alguém tinha roubado o almoço. O capitão corou muito e empurrou uma caixa de chocos para debaixo da impressora.
20.55
A ruiva confessou-me que a alcunha dela era Rabinho Corado e insistiu comigo para ver a origem da alcunha. Declinei, claro.
Dia 9
16.50
Acompanhou-me hoje uma estranha sensação de dejá-vu. Aquelas ondas, os peixes, as nuvens, tudo me parece familiar.
Dia 10
18.30
De novo aquela sensação de estar a ver tudo repetido. Estou a ficar preocupada. Será do cansaço?
Dia 11
20.05
A sensação de dejjá-vu não me larga. Posso jurar que é a mesma medusa que há 3 dias está agarrada à popa do navio
Dia 12
10.20
O comandante mandou reunir com urgência. Parece que se deu conta hoje, de que estamos encalhados ao largo da Figueira há quatro dias. Alguém me salve, por favor.
Dia 13
13.00
Chegou finalmente o rebocador que nos vai levar de novo para Lisboa. Não sei se aguento, mal se veja terra atiro-me à água e nado para a costa. Estou a viver num filme de Fellini.
23.55
Chegámos, não me despedi de ninguém e corri para o carro. Quando passar o trauma, meto isto no Pano do Pó.