A viagem
O relógio digital no centro do tablier marcava 3.24h. O carro deslizava veloz e solitário pela auto-estrada. O rádio estava mudo, porque os seus pensamentos fervilhavam ainda num turbilhão aparentemente sem saída e ele queria escutar tudo o que se passava dentro da sua cabeça.
Conduzia depressa, mesmo sem se dar conta. Sem sequer pensar nisso, tentava deixar entre si e os seus problemas a maior distância possível, alheio à inutilidade da distância na resolução de tudo o que acontecera. O coração batia forte e conseguia senti-lo no peito, ameaçando explodir a cada batida.
Flocos de neve começaram a colar-se ao pára-brisas e obrigaram-no por um instante a desviar a mente do que o atormentava. Ligou as escovas na velocidade máxima e decidiu abrir o vidro. O vento gelado atingiu-o como um objecto cortante, mas esses instantes com o pensamento nas coisas triviais soube-lhe bem e decidiu prosseguir com o vidro aberto... pelo menos até não suportar mais a dor gelada, o que aconteceu uns 3kms mais à frente.
Voltou a fechar o vidro e tocou no ‘on’do rádio. Tinha um cd de Radiohead que deixou a tocar baixo. À mente regressaram os eventos que desencadearam esta viagem. Na verdade não sabia bem o desfecho da viagem... sabia que tinha que se sentar no carro, carregar no acelerador partir. Não tinha decidido o destino daquela viagem e pelo menos até a luz amarela da reserva de combustível acender, não se ia preocupar com isso.
Sentia uma dor insuportável no peito, que queria libertar pisando mais forte o acelerador..180...190...210km/h, o som do vento fê-lo olhar para o conta kilómetros, mas não o fez abrandar. Sentia-se cobarde pela fuga, mas nem tinha ainda a certeza de que fosse um fuga. Podia estar apenas a tentar encontrar o sentido da sua existência, ou o bálsamo que lhe aliviasse o sofrimento. Não sabia, essa era a verdade.
Alguns kilómetros mais à frente, teve uma nova chamada à realidade, os as luzes intermitentes e rotativas de carros de polícia e uma ambulância fizeram-no abrandar a marcha. Quase parou... estava um carro capotado no centro da via, antecedido por indesmentíveis traços de despiste pintados a negro na alva neve que cobria o asfalto. O polícia obrigou-o a deter a marcha e depois de lhe pedir para abrir o vidro pediu paciência, mas que teria de aguardar que removessem o carro. Tentando apenas parecer interessado, perguntou pelos ocupantes; era uma só pessoa, tinha falecido. Demasiado absorto na sua dor nem realizou as palavras do polícia.
Quando finalmente o deixaram avançar, a sua vista cruzou o carro destruído em cima do reboque e recebeu um soco no estômago, daqueles que nos deixam estendidos no tapete até bem depois do árbitro contar até 10. Instintivamente parou e procurou a placa de matrícula no meio da chapa retorcida.
Debruçou a cabeça sobre o volante e chorou compulsivamente. Desligou o carro compreendendo que a sua viagem terminara e adormeceu em paz.