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Pano do Pó

Para tirar as coisas a limpo,
mesmo nos cantos mais difíceis.


2004-10-27


 

Cinzento

Álvaro estava sentado na secretária, no seu cubículo minúsculo no 28º andar. Estava a ter uma manhã particularmente complicada. As suas 3 linhas telefónicas não paravam por um segundo e os seus olhos corriam os terminais da Bloomberg e da Reuters, enquanto anotava cotações e respondia a ordens de compra e venda.

Sentia-se um pouco tonto e apesar de ser pleno Inverno, o suor escorria-lhe pela testa. A princípio não ligou, continuou a sua frenética actividade, mas por fim cedeu... colocou o telefone em ocupado e enfiou o rosto nas mãos. Respirou fundo e reuniu as forças necessárias para se levantar e caminhar até à casa de banho.

Debruçou-se sobre o lavatório e durante uns segundos e ficou ali a tentar recuperar o fôlego. Abriu a torneira da água fria e levou água ao rosto por uns instantes. Por fim olhou-se no espelho e notou algo assustadoramente fora do normal.

No primeiro momento nem se deu conta do que era, mas rapidamente constatou que estava a ver tudo a preto e branco. Assustou-se e teve que se agarrar bem ao lavatório para não cair. Voltou a levar água fria ao rosto e de novo, a medo, olhou para o espelho.

A imagem que este lhe devolveu não o tranquilizou... antes pelo contrário. Ele não estava a ver tudo a preto e branco, apenas a si mesmo. Ficou sem compreender o que se passava, mas era evidente que estava a preto e branco, ou pelo menos assim se via. A sua pele, os seus cabelos e as suas roupas não tinham outras cores q não as derivadas de preto e branco.

Havia algo de profundamente errado com ele. Álvaro limpou o rosto numa folha de papel e saiu da casa-de-banho. Encostou-se à porta do lado de fora e observou a actividade frenética de telefones a tocar e pessoas a correr, que se desenrolava no enorme espaço dividido em cubículos. Claramente, o mundo continuava, alheio ao que lhe estava a acontecer.

Estendeu a mão a um colega que passava e tentou abrir a boca para pedir ajuda, mas apenas obteve um aceno de indiferença e um ‘Tão Álvaro, tudo em cima?’. Não, não estava tudo em cima.

Encaminhou-se para o cubículo da Margarida, a sua única amiga no meio de todos os colegas. Ela estava ao telefone e ele sentou-se ao seu lado sem a incomodar. Ela sorriu-lhe e continuou a tomar nota de cotações e de detalhes de rendimento de aplicações. Por fim olhou mais atentamente para ele e pareceu notar algo.

Álvaro continuava em silêncio, tremia de medo e tinha suores frios. A Margarida pousou finalmente o telefone e olhando para ele perguntou:

- Que tens? Estás muito pálido.
- Pálido, só isso?
- Sim... e estás a transpirar.
- Mas não notas nada de diferente na minha cor?
- Acabei de te dizer que estás pálido, Álvaro. Sentes-te bem?

Àlvaro abanou negativamente a cabeça mas não ousou dizer que se via a preto e branco. Só podia estar doente, gravemente doente. No entanto ela apercebeu-se de que ele não estava bem. Fez um pequeno telefonema ao chefe de ambos e disse que ia levar o Álvaro ao médico.

Saíram no carro dela. Álvaro sentia um terror imenso dentro dele. Continuava a ver-se a preto e branco e nem precisava olhar para o espelho, bastava olhar para si, para os seus braços, mãos, pernas...

Margarida rompeu o silêncio,

- Como te sentes?
- Mal, com suores frios e acho que tenho algo na vista
- Na vista?
- Sim, vais achar isto ridículo, mas estou a ver-me a preto e branco. Só a mim e às minhas roupas, o resto está normal.
- Estás mesmo a falar a sério, não estás?
- Estou,Margarida.
- Chegamos num instante ao hospital, descansa.

Poucos minutos depois, Álvaro contava a um médico já bem perto da idade da reforma, o que sentia. Para seu espanto, quando acabou de descrever os sintomas, o médico manteve o ar impávido e não fez o menor sinal que pudesse indiciar surpresa, ou sequer preocupação. Pensou uns instantes e por fim disse:

- Sr Álvaro, a cura para o seu mal não a pode encontrar aqui no hospital.
- Mas... como assim? Tenho que ir para outro hospital?
- Não, nada disso. A cura está dentro de si.
- Como? Não percebo.
- Que se passa consigo, perdeu a capacidade de ver a sua cor, verdade?
- Sim, suponho.
- Precisamente, está em si recuperar a capacidade de se ver com cor, de olhar para si e ver mais que o preto e branco que vê agora, a capacidade de voltar a ter cor naquilo que sente e naquilo que vê.
- ....
- Sim, é tão simples como isso. E já agora, não se esqueça de comer frutas e legumes.

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