O dia do Juízo (Parte II)
Continuava a ouvir o som das sirenes dos carros da polícia. Ouvia gritos e viu chegar diversos agentes, que apontavam armas a um corpo estendido no chão com uma Glock 18C na mão... demorou uns instantes a perceber que o corpo que via, inerte, era o seu.
Sentia-se flutuar sobre os acontecimentos, as imagens pareciam correr em câmera lenta e o som chegava até ele abafado.
Enquanto o número de pessoas no escritório ia aumentando e o som das sirenes lá fora se multiplicava, sentiu-se elevar e afastar lentamente daquele cenário de caos.
Sentia-se a flutuar num líquido morno, quase um regresso ao útero... sentia paz e felicidade. Olhou para cima; na direcção em que se dirigia, ao fundo, uma luz levemente arroxeada e difusa distinguia-se do branco em que estava rodeado.
Uma poderosa voz masculina despertou-o deste breve torpor. Alguém chamava o seu nome e o som vinha da luz arroxeada.
Finalmente chegou até lá. À entrada, uma senhora de especto elegante, completamente vestida de branco recebeu-o. Quase poderia ser uma normal recepcionista, não fora flutuar a escassos centímetros do chão e emanar um difusa luz verde.
- M.? - Perguntou.
- Sim, sim, sou eu.
- Acompanhe-me, por favor.
Indicou a M. uma cadeira naquilo que era indubitavelmente uma vulgar sala de espera de consultório; sem janelas, sem música e com algumas revistas bastante antigas sobre uma mesa.
Breves intantes depois, a porta do único gabinete visível abriu-se sózinha e alguém chamou o seu nome.
M. ergueu-se e a medo percorreu a curta distância até à porta. Neste momento os seus últimos actos em vida começavam a pesar-lhe como um bloco de granito sobre os ombros.... ia pagar pelos seus actos.
Deteve-se à porta, não parecia habver ninguém lá dentro. Uma voz no entanto repetiu a ordem de entrar e se sentar.
Sentou-se na única cadeira vazia, frente a uma enorme secretária. Do outro lado da secretária, um cadeirão de pele de proporções bíblicas, voltado de costas para M. e de frente para uma janela gigantesca, de onde se podia observar o arquipêlago das Maldivas.
O enorme cadeirão voltou-se finalmente. Um idoso de feições orientais, vestido num fato prateado, com longos cabelos brancos, olhava-o enquanto cofiava as barbas grisalhas e em aparente desordem. Por fim quebrou o silêncio:
- Sabe porque está aqui?
- Sim, suponho que sim.
- E é por...?
- Bem, parece que morri e... receio não me ter portado muito bem. Vou para o inferno? Que me vai acontecer?
- Tudo a seu tempo. Porque fez aquilo, M.?
- Nem sei bem... acho que cheguei ao limite. Não aguentava mais as mesmas caras hipócritas, o mesmo dia repetido até à exaustão... perdi o controle.
- Acontece com frequência, sabe M. - perguntou a estranha figura, sem mexer os lábios e sem deixar de cofiar as barbas.
- Sim? Então é mais ou menos normal? Não há problema, portanto?
- Eh, calma. Não nos precipitemos. Diria antes que tem atenuantes. Aqueles seus colegas eram de facto um bocado manhosos. Eu não sei se teria aguentado tanto tempo.
- Hã?!!
- Pois... especialmente o seu chefe, uma nódoa, mas há uma coisa que me intriga mesmo.
- O quê?
- Como conseguiu, M. Como foi que conseguiu?
- Bem... nem sei bem... acordei e pensei que não era capaz de aguentar mais...
- Não, não é isso - atalhou o ancião - o que quero saber é como conseguiu uma Glock 18C. Eu ando há meses a procurar uma e nem no mercado negro, aquilo é mesmo difícil de arranjar.
- .... pois.....
AGRADECIMENTO: Este texto não seria possível sem a consultoria técnica em armas do meu amigo Loki, nem sem a inspiração proporcionada pelos meus colegas. A ambos o meu obrigado.