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Pano do Pó

Para tirar as coisas a limpo,
mesmo nos cantos mais difíceis.


2004-11-11


 

O homem sem passado (parte I)

David, segurava o volante apenas com a mão direita. Na esquerda, com o braço pendurado fora da janela, entalava uma cigarrilha entre o indicador e o médio.

Alternava a sua atenção entre a estrada, escassamente iluminada pelos faróis do Triumph Spitfire e a ponta rubra da cigarrilha, que se queimava demasiado depressa pelo vento da deslocação. Não tinha música, apenas o ronronar rouco do quatro cilindros a baixa rotação. Mas era um ronronar envolvente, que se enquadrava na perfeição com aquele início de noite, com o horizonte ainda vermelho, lá longe e o vento quente, que a capota baixa permitia afagasse o seu rosto bronzeado e os cabelos claros.

Tinha sido um dia cansativo... a gravata desapertada, as mangas arregaçadas e o casaco negligentemente atirado para o espaço atrás dos bancos, atestavam rapidamente o cansaço de David, que era usualmente mais metódico e conservador.

Na verdade, David não tinha demasiadas razões para se sentir alegre. Diversos problemas profissionais e pessoais, há algum tempo que lhe tinham retirado outros prazeres da vida. Conduzir o pequeno roadster nas estradas sinuosas da Baviera, era um dos seus últimos escapes. E naquele dia tinha decidido tomar o caminho mais longo, queria fazer kilometros antes de se fechar em casa... aproveitar o calor do curto verão Bávaro e deixar o som rouco do motor ajudá-lo a limpar a cabeça.

Seguia assim embalado num torpor confortável, quando se apercebeu de luzes no retrovisor. De início apenas uma intensa mancha azulada. Algum carro com faróis de xénon que se aproxima – pensou - e recolheu a mão esquerda para dentro, segurando também o volante. Mas as luzes desapareceram na curva seguinte. Retomou a posição mais descansada, mas algumas centenas de metros à frente, as mesmas luzes, ainda disformes, mas mais próximo, surgiram de repente no espelho. Aproveitou a pequena recta que se iniciava, para encostar o mais à direita possível e assim facilitar a passagem. Abrandou ainda mais a marcha, porque o incomodava a luz intensa reflectida, mas fosse quem fosse, mantinha a distância constante.

Agastado, David decidiu acelerar. Esmagou a cigarrilha no cinzeiro, meteu a mudança inferior e, pisando decididamente o acelerador, agarrou com ambas as mãos o volante. Estava decidido a deixar para trás aquelas luzes irritantes. O chiar da borracha nas curvas e o som do motor, agora transformado num grito metálico e grave, incentivavam-no, mas sem efeito. As luzes mantiveram durante algm tempo uma distância constante, mas a dada altura começaram mesmo a aproximar-se.

Quem quer que estivesse ao volante do outro carro estava decidido a irritar David. E conseguiu-o. Aproveitou uma pequena clareira na floresta que ladeava agora a estrada e encostou, desligando as luzes, mas com o motor a funcionar. Logo depois olha para o espelho e nem sinal das luzes. David desligou o carro,mas o absoluto silêncio cortado pelos fracos sons da floresta, foi a única coisa que consegiu ouvir.

(...continua)

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