A promiscuidadeNão ando com uma placa na testa a dizê-lo, mas a verdade é que sou católico (e praticante, segundo o paradigma actual). E há uma razão para hoje o afirmar aqu no Pano do Pó.
REcebi ontem um email de um amigo meu, também católico, com o seguinte assunto "Aos eleitores católicos", que continha um documento em anexo. Esse documento é uma "carta aberta de católicos aos eleitores", e invoca a doutrina da igreja como argumento para uma série de tomadas de posição sobre as eleições de dia 20.
A primeira posição é a de que "A abstenção é uma grave omissão aos
deveres de uma consciência católica". Embora eu considere que não se devem misturar as esferas religiosas com as esferas políticas, não me choca o teor da mensagem (a velha história dos meios e dos fins) até porque não pretende beneficiar ou prejudicar niguém.
A segunda posição já me irrita. Diz esta carta que "o cristão deve distinguir e evitar comprometer-se em colaborações incondicionais e contrárias aos princípios de verdadeiro humanismo" e, assim, devem ter em consideração no seu voto as questões do aborto e eutanásia, "a tutela e promoção da família,
fundada no matrimónio monogâmico entre pessoas de sexo diferente" e mais algumas coisas.
Como dizia o RAP, "gosto imenso que me digam o que devo e não devo fazer".
Há aqui três questões que me fazem repudiar fortemente esta iniciativa. A primeira é a questão da legitimidade de quem quer que seja que escreveu esta carta para o fazer. Que direito tem alguém para se assumir como consciência e voz dos católicos? Eu sou católico e não mandatei niguém para falar por mim aos eleitores. Quando muito a carta deveria ser assinada por um grupo de pessoas católicas. Sendo o documento uma carta de um grupo de pessoas individuais é um abuso assiná-la desta forma. Se é um documento emitido por algum organismo oficial da igreja deveria ser identificada como tal (e aí teríamos uma questão ainda mais grave). Assim, parece apenas mais um caso de tentativa hipócrita de aproveitamento eleitoral.
A segunda questão é a da liberdade individual e da separação entre a esfera religiosa e a esfera política. Todos somos pessoas com capacidade de compreensão e tomada de decisão consciente, pelo que somos perfeitamente capazes de, individualmente e sem a ajuda iluminada de nenhum auto-nomeado arauto da compreensão dos fundamentos da fé católica, interpretar as propostas políticas e o trabalho anterior das várias forças partidárias e avaliar a sua adequação e aceitabilidade face às nossas crenças.
A terceira questão prende-se com a razoabilidade da "sugestão". Todo o argumento da carta se baseia no alinhamento do voto com a doutrina da igreja, ou seja, os católicos deverão votar nos partidos que são contra a descriminalização do aborto, contra a eutanásia, contra o casamento homosexual, etc. Mas, pergunto eu, ser católico resume-se a isto? Ser católico consiste em simplificar desta forma as opções políticas? Parece-me que o projecto político de um qualquer partido é um todo abrangente, do qualestas questões são uma pequena parte. Por outro lado, há outras questões relacionadas com as políticas e opções partidárias que também se intercruzam com as questões da fé, mas não são tão simples de analisar porque não permitem análises do tipo branco ou preto (se bem que algumas, eventualmente..., mas não é essa a questão). Reduzir a opção de vota das pessoas a raciocínios tão simplistas, redutores e acessórios é pura manipulação.
Na minha opinião, esta carta apresenta-se como uma iniciativa imoral, cobarde e hipócrita, que me faz envergonhar de ser permitido que qualquer pessoa se afirme como católico.